quarta-feira, 30 de maio de 2012

De mais uma experiência



“... não somos nossos erros...”
Paranahansa Yogananda



Viver em outro país é um exercício constante de desidentificar-se de si mesmo. Diferente de viajar a outro país a turismo, situação na qual errar é permitido e até mesmo divertido, viver no exterior implica acostumar-se com os próprios equívocos ainda quando esses já extrapolaram os limites do bom senso, frequentemente tolerados em relação a quem está apenas de passeio.

                Aprender que o comércio funciona em horários diferentes dos que me são habituais é algo relativamente simples quando se sabe na teoria, mas não foram duas nem três vezes as que saí de casa para comprar algo e me deparei com tudo fechado e todos cozinhando, comendo ou dormindo. Também não foram poucas as vezes em que me assustei ao encontrar estabelecimentos funcionando em plena madrugada. Atravessar as ruas virou aventura, já que os semáforos para pedestres só funcionam se estamos parados em uma rua de mão única longe da esquina. Se estes estão perto da esquina, não há chance: ou se espera o condutor parar, o que é realmente uma gentileza da parte dele, ou se sai correndo entre a abertura de um sinal e o fechamento do outro junto com a leva de pessoas que estão por ali. Do contrário, não se atravessa ruas. Sair para caminhar num domingo de manhã só se for para encontrar as pessoas voltando da balada, que começa entre duas e três da madrugada, assim como estar com as crianças nas ruas, praças e parques à meia noite é algo corriqueiro e estimulado pelo movimento das sorveterias e lanchonetes para todas as idades com vitrines e portas abertas.
Quando se está em meio a uma conversa e todos de repente riem de algo, sempre fica aquela sensação de “qual foi a parte que eu perdi?” porque determinadas situações só fazem sentido pra quem vivenciou a infância, a idade escolar, a adolescência, a rotina do lugar... A história do país que se aprende na escola, os atores de televisão famosos apenas em âmbito local, os próprios programas de TV e produtos por aí divulgados, tudo se apresenta nebuloso e a indiferença frente ao desconhecido pode apresentar insipidez e certamente alheamento. E nem é dizer que se possa aprender a História nos livros. Sim, podemos. Mas só um brasileiro, por exemplo, consegue entender o ridículo que é festejar o dia do índio pedindo às crianças que coloquem uma peninha no meio da testa e que façam dois riscos de tinta guache em cada bochecha. Ridículo esse que, aliás, deve ser compartido por grande parte da América Latina pela similaridade com que se constituíram nações de língua materna europeia.
A maneira de vestir-se, pentear-se (nessa parte, em especial, confesso que tenho sentido bastante alívio por nunca ter me adaptado perfeitamente ao padrão de beleza nacional!), caminhar, ficar parado na esquina para não ser atropelada são suspeitas ambulantes de um estrangeirismo que atrai a curiosidade dos olhares e direciona uma atenção por vezes de admiração e outras de desprezo pela percepção de um outro diferente. A fala, no entanto, denuncia de forma irremediável a cisão daquilo que “não é daqui”. Não apenas pelo sotaque em si, que de maneira bastante lenta vai se diluindo, mas pela escolha vocabular, por um termo que geralmente não se usa, por um objeto simples cujo nome não se sabe exatamente por nunca ter sido necessitado e mesmo a rispidez que aparenta um “por nada!” a um agradecimento para o qual costumam dizer “não, não, por favor!”. Não apenas a acentuação das palavras de maneira adequada, mas até a ênfase musical que as palavras possuem quando são ditas fazem parte daquilo que forma a cultura onde se busca imergir. Um gesto, uma interjeição. Aliás, todas as interjeições, sejam de dor, de alegria, de esquecimento, de pesar. A maneira de segurar um copo, ou o mate... Tudo aponta para uma ação que se automatizou em uma máquina distinta.
Por mais estranho (e triste!) que pareça, quando quero me sentir em casa vou a um supermercado. Os produtos dispostos na prateleira, os cestos ou os carrinhos para aconchegar o consumo, os produtos Coca-Cola, Johnson&Johnson, Nestlé, os caixas, as filas, o dinheiro, as sacolas de plástico marcado com o nome do estabelecimento, ainda que desconhecido, me parecem familiar. A ausência da necessidade de proferir palavra torna-me, porém, naquele instante, igual a todos os outros.

4 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  2. É impressionante como absorvemos e automatizamos comportamentos e conceitos que nunca serão percebidos a não ser que se confrontem com uma cultura diferente. Mais do que serem confrontados, precisam ser submersos nela. O problema nem de longe está nessa diversidade cultural, mas sim na certeza de que somente a nossa é valida. Daí o estranhamento de nativos diante de um gesto ou comportamento não habitual por parte de um forasteiro. Daí a nossa própria insatisfação frente a uma realidade diferente da qual nos acostumamos. A incapacidade de familiarizar o estranho e estranhar o familiar enrijece nossas mentes nos tornando incapazes de perceber e aceitar que certo e errado se equivalem ao se adotar mais do que um único ponto de vista.
    'Felizmente' hoje há algo maior que isso. Algo que transcende povos e culturas e torna-se um ponto comum entre as pessoas não importando de qual canto do mundo elas sejam. Hoje em dia até conflitos culturais são esquecidos por uma força maior que nos 'une', o Dinheiro.
    Refiz o comentário só porque havia me esquecido de mencionar a belíssima trilha sonora do Radiohead com a qual li o texto. =)

    ResponderExcluir
  3. Bernardo! Que alegria poder ler um texto seu outra vez, sem regras nem imposições... Sim, enrijecidos é o que somos... Considero um exercício nobre para o desenvolvimento do espírito a gente se esforçar para conseguir distinguir o que é a disciplina necessária que impulsiona e ordena a ação e multiplica o nosso tempo cada vez mais veloz do que são os hábitos que permanecem como atos automáticos e inconscientes, embotando cada vez mais a mente e alienando as atitudes.

    Eu, como sempre digo, quero viver pra ver o dinheiro não valer nada...

    Ah! Adorei a fina ironia. Seja sempre benvindo a essa página meio abandonada! : )!!

    ResponderExcluir
  4. Página abandonada... Amiga largada... No plural e singular. Amiga, menos net por aqui, mas as saudades são as mesmas. Vai para "lá" ¿cuándo?

    ResponderExcluir